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17 outubro 2024

Poesia de António Ramos Rosa

11:47 // by Biblioteca Escolar António Nobre // No comments

 

Não posso adiar o amor para outro século

não posso

ainda que o grito sufoque na garganta

ainda que o ódio estale e crepite e arda

sob montanhas cinzentas

e montanhas cinzentas


Não posso adiar este abraço

que é uma arma de dois gumes

amor e ódio


Não posso adiar

ainda que a noite pese séculos sobre as costas

e a aurora indecisa demore

não posso adiar para outro século a minha vida

nem o meu amor

nem o meu grito de libertação


Não posso adiar o coração


O FUNCIONÁRIO CANSADO

A noite trocou-me os sonhos e as mãos

dispersou-me os amigos

tenho o coração confundido e a rua é estreita  

estreita em cada passo  

as casas engolem-nos  

sumimo-nos  

estou num quarto só num quarto só  

com os sonhos trocados  

com toda a vida às avessas a arder num quarto só


Sou um funcionário apagado  

um funcionário triste 

a minha alma não acompanha a minha mão  

Débito e Crédito Débito e Crédito  

a minha alma não dança com os números  

tento escondê-la envergonhado  

o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente  e debitou-me na minha conta de empregado  

Sou um funcionário cansado dum dia exemplar

Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?

Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?


Soletro velhas palavras generosas

Flor rapariga amigo menino  

irmão beijo namorada  

mãe estrela música


são palavras cruzadas do meu sonho  

palavras soterradas na prisão da minha vida  

isto todas as noites do mundo uma noite só comprida  

num quarto só 


O grito claro 

De escadas insubmissas

de fechaduras alerta

de chaves submersas

e roucos subterrâneos

onde a esperança enlouqueceu

de notas dissonantes

dum grito de loucura

de toda a matéria escura

sufocada e contraída

nasce o grito claro



ESTOU VIVO E ESCREVO SOL

Eu escrevo versos ao meio-dia e a morte ao sol é uma cabeleira  que passa em frios frescos sobre a minha cara de vivo  

Estou vivo e escrevo sol


Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam  

no vazio fresco  é porque aboli todas as mentiras  

e não sou mais que este momento puro  

a coincidência perfeita 

no ato de escrever e sol


a vertigem única da verdade em riste  

a nulidade de todas as próximas paragens  

navego para o cimo  

tombo na claridade simples  

e os objetos atiram suas faces  

e na minha língua o sol trepida


Melhor que beber vinho é mais claro  

ser no olhar o próprio olhar  

a maravilha é este espaço aberto  

a rua  

um grito  

a grande toalha do silêncio verde

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