Tempo de Poesia
Todo o tempo é de poesia
Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.
Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia
Todo o tempo é de poesia
Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas que a amar se consagram.
Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.
Todo o tempo é de poesia.
Desde a arrumação ao caos
à confusão da harmonia
António Gedeão. Poesias Completas (1956-1967).
Como se faz o poema
Para falarmos do meio de obter o poema,
a retórica não serve. Trata-se de uma coisa simples, que não
precisa de requintes nem de fórmulas. Apanha-se
uma flor, por exemplo, mas que não seja dessas flores que crescem
no meio do campo, nem das que se vendem nas lojas
ou nos mercados. É uma flor de sílabas, em que as
pétalas são as vogais, e o caule uma consoante. Põe-se
no jarro da estrofe, e deixa-se estar. Para que não morra,
basta um pedaço de primavera na água, que se vai
buscar à imaginação, quando está um dia de chuva,
ou se faz entrar pela janela, quando o ar fresco
da manhã enche o quarto de azul. Então,
a flor confunde-se com o poema, mas ainda não é
o poema. Para que ele nasça, a flor precisa
de encontrar cores mais naturais do que essas
que a natureza lhe deu. Podem ser as cores do teu
rosto - a sua brancura, quando o sol vem ter contigo,
ou o fundo dos teus olhos em que todas as cores
da vida se confundem, com o brilho da vida. Depois,
deito essas cores sobre a corola, e vejo-as descerem
para as folhas, como a seiva que corre pelos
veios invisíveis da alma. Posso, então, colher a flor,
e o que tenho na mão é este poema que
me deste.
Nuno Júdice | Geometria Variável | Publicações Dom Quixote, 2005
O Poema
O poema não é o canto
que do grilo para a rosa cresce.
O poema é o grilo
é a rosa
e é aquilo que cresce.
É o pensamento que exclui
uma determinação
na fonte donde ele flui
e naquilo que descreve.
O poema é o que no homem
para lá do homem se atreve.
Os acontecimentos são pedras
e a poesia transcendê-las
na já longínqua noção
de descrevê-las.
E essa própria noção é só
uma saudade que se desvanece
na poesia. Pura intenção
de cantar o que não conhece.
Natália Correia
Arte poética
Encontrei a poesia antes de saber que havia literatura. Pensava que os poemas não eram escritos por ninguém, que existiam em si mesmos, que eram como um elemento do natural, que estavam suspensos, imanentes. E que bastaria estar muito quieta, calada e atenta para os ouvir.
Desse encontro inicial ficou em mim a noção de que fazer versos é estar atento e de que o poeta é um escutador.
Sophia de Mello Breyner Andresen. “Arte poética IV”, Dual, in Obra Poética III, Lisboa: Caminho, 1991.
O poeta
Foi visto
(diversas vezes) com uma
caneta na mão. Nem
tentava disfarçar. Sentava-se à mesa consigo
(sempre
cingido de livros) e escutem:
o que fazia era
escrever poemas. Sei muito bem o que digo.
Ele fazia poemas. Os outros
passavam ao largo
(fugindo a qualquer pergunta) ele nem
sequer escondia o que ali estava a fazer. Ali
à frente de todos. Linhas e linhas escritas.
Não se limitava apenas a viver a sua vida.
Sei muito bem o
que digo. Aquilo eram
poemas.
João Luís Barreto Guimarães
Liberdade
O poema é
A liberdade
Um poema não se programa
Porém a disciplina
— Sílaba por sílaba —
O acompanha
Sílaba por sílaba
O poema emerge
— Como se os deuses o dessem
O fazemos
Sophia de Mello Breyner Andresen, in O Nome das Coisas
Ver claro
Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.
Eugénio de Andrade. Os Sulcos da Sede. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2021.
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